Lilia é uma alma, sobretudo, gentil. Gentil pelo som da palavra, por ser uma alma que gosta de gente, e gentil também pela generosidade. Essa série começa aqui, com ela, que topou a conversa e inaugura a nova editoria “Dois dedos de prosa” do Escrita Matinal – o nosso pequeno registro no tempo de pessoas que fazem maravilhas com a palavra escrita.
Quem é Lilia Guerra? Conte um pouco sobre a sua história e os caminhos que fizeram de você escritora.
Paulistana! Neta de Maria Júlia, filha de Ana Júlia, sobrinha de Júlia Maria. As mulheres da minha vida, que traçaram o caminho pra que eu fosse uma escritora. Apesar de ter sido sempre apaixonada por livros, não consigo imaginar que chegaria a escrever um, se não tivesse me inspirado em tudo o que vi e vivi na companhia dessas mulheres. Observar e estudar suas trajetórias e tudo o que elas construíram é uma fonte inesgotável de inspiração.
Para você, qual o sentido da escrita? Por que você escreve?
Acho que o sentido da escrita começa com a criatividade que não se pode conter. Por mais técnico que seja um escritor, as histórias não nascem no papel. Elas nascem nos olhos, nos ouvidos, ou seja: na escuta, na observação. Pra mim, são muitos os sentidos da escrita. Eu escrevo pra protestar, pra me vingar, pra me declarar, pra me divertir, pra registrar, preservar. Escrevo por que é um jeito de conversar com muita gente ao mesmo tempo. E comigo. Acho que é um desejo que eu sempre tive. Conversar com as pessoas por aí, saber seus nomes, suas histórias. Às vezes, eu consigo fazer isso. Mas, na maioria das vezes, imagino um nome e uma história pra cada uma delas. Isso já é escrever.
Muitas das suas histórias partem de relatos e vivências da vida real e da sua família. Como você sente que uma história te encontrou para ser contada?
Tem vezes em que acho a história bonita e penso: queria que muita gente conhecesse. E quando digo bonita, nem sempre estou falando de uma história feliz. Quanto à minha família, vi as minhas mais velhas serem tratadas sempre como se suas existências não tivessem importância. Como se elas tivessem nascido e vivessem unicamente pra servir aos que, realmente, tinham direito a um lugar. Mas eu via importância nelas. Eu tinha interesse na vida delas. Em suas rotinas, nos conflitos. Eu as admirava, queria imitá-las, ser como elas. Escrever é uma maneira de demonstrar esses sentimentos.
Como você transita da realidade para a ficção? De que forma seus personagens e narrativas são construídos?
A realidade é a base pra que eu construa minhas paisagens, minhas cores. Meus céus, chãos, uma cerca, uma casa num confim ou na cidade. Eu decido contar determinada história, mas posso aumentar, diminuir, acrescentar, fazer com que aconteça em outro país. Isso de poder, a possibilidade me seduz no processo de escrita. Construir paisagens, lugares, criar cenários é muito divertido, mas construir perfis de pessoas, de gentes, ah… as características físicas, os trejeitos. Imaginar a voz de um personagem, suas manias. Mobiliar sua casa, pensar em seus vizinhos, na árvore que está plantada na rua onde ele vai passar. É o que eu mais gosto de fazer.
Como foi o processo de criação de “O céu para os bastardos”? A escrita, para você, tem algum planejamento prévio?
A criação de O céu para os bastardos começou no título. Minhas histórias foram sempre povoadas de personagens nessa condição. Criados pelas mães, pelas avós. Eu queria falar sobre isso e precisava de uma trama central pra abrigar todas as outras. Sá Narinha, a narradora, me pareceu uma voz capaz de representar a população de Fim-do-mundo. Mas há outras vozes capazes. Muita gente ainda vai falar. Eu não tenho um planejamento de produção, normalmente, escrevo quando é possível, mas acho que deve ser muito produtivo ter um planejamento e estou tentando, sabe?
Sei que você tem estreita relação com a música. De quais formas você vê que a música e a prosa se entrelaçam e como isso influencia a sua arte?
Sim, suspeito que minha alma é feita de música e acho que até meu físico é impactado por isso. Não sou de desenvolver muitos rituais antes de escrever, mas confesso que, ouvir música antes de me debruçar sobre um arquivo faz toda a diferença. Me fortalece, me anima. Me enche de ideias. Acho que fico admirando os processos criativos dos compositores, tão explícitos, tão derramados nas canções interpretadas. Há uns dias atrás, estava ouvindo Lupcínio Rodrigues e parei tudo o que eu estava fazendo pra prestar atenção absoluta nas letras do álbum. Cada música é um conto, uma crônica. Algumas são verdadeiros livros. Não tem jeito de não ser afetada, influenciada. São novas palavras, são confissões, reflexões e constatações compartilhadas. Ouvir música é um outro formato de leitura.
Você está trabalhando em algo novo no momento? Quais são os planos para o futuro?
Estou sempre, sempre, fazendo anotações sobre possibilidades, planejando escrever isso e aquilo. Projetos e mais projetos. Mantenho dois ou três arquivos importantes abertos e procuro movimentá-los todos os dias, ao menos um pouquinho. Mesmo que seja só pra ler, aplicar edições. Mas tenho o texto principal em que estou trabalhando realmente com um prazo estabelecido por mim mesma. É um romance. Meus planos para o futuro, além da escrita são com a leitura. Eu quero ler muito.
Conte sobre alguma coisa que te encantou recentemente. O que você tem visto por aí e gostado?
Olha, mergulhei há algum tempo na pesquisa sobre as sambistas brasileiras, sobretudo as que não são muito conhecidas, sabe? Ando pesquisando sobre a trajetória dessas mulheres, tentando resgatar álbuns que gravaram, fotos, entrevistas, registros. Estou estudando também o samba de São Paulo, procurando conhecer tudo o que posso sobre isso e as descobertas geram muitas anotações. Muitas ideias. É um universo. Esses discos têm me encantado.
O que você mais deseja para a literatura no Brasil?
Desejo que equipamentos de leitura, espaços físicos, se multipliquem pelos lugares e que estejam abertos todos os dias, em horários que torne possível a frequência de leitores interessados em todo o tipo de livro. Acredito que a disponibilidade é o inicio para o relacionamento. Mas penso que, a ação de ler, ler com desenvoltura e com autonomia é a chave. Desejo que variados formatos de livros sejam disponibilizados, para todos os leitores.
E, por último, como você gostaria de ser vista e lembrada?
Ah… como alguém que amou a arte em suas variadas manifestações. Que buscou resgatar e preservar memórias. E que tinha esperança.

Lilia Guerra é autora da coleção de contos “Perifobia”, finalista do Prêmio Rio em 2019 e do romance Rua do Larguinho. Seu primeiro livro, “Amor Avenida”, originalmente lançado em 2014, foi reeditado em 2022, ano em que também foi publicada a trilogia “Novelas que escrevi para o rádio” e a reunião “Crônicas para colorir a cidade”. Em 2023, foi contemplada com o Prêmio Carolina Maria de Jesus pelo Ministério da Cultura. “O céu para os bastardos”, lançado pela editora Todavia, é seu mais recente romance e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2024.
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